Certa vez os fariseus questionaram Jesus sobre qual seria o grande mandamento da Lei (Mt 22.36-40). Respondendo, Ele afirma que toda a Lei e os profetas dependiam de duas ordenanças: "Ame o Senhor, seu Deus, de todo o seu coração, de toda a sua alma e de todo o seu entendimento" e "ame o seu próximo como a si mesmo". Jesus é perguntado sobre o grande mandamento da Lei, e responde que não há um, mas dois. Mas ambos são equivalentes, pois o segundo é introduzido com a qualificação de "ser semelhante ao primeiro", e todas as 365 proibições e 248 obrigações são-lhes subordinadas. Há uma sugestão de interdependência entre ambos, como se fosse as faces de uma mesma moeda.
Ainda assim, há uma sutil hierarquia, pois o amar a Deus vem em primeiro. Talvez porque não dois corpos não ocupam o mesmo lugar no espaço, nem duas palavras podem ser pronunciadas simultaneamente pela mesma pessoa. Mas provavelmente para definir o termo "amor" Jesus escolheu esta ordem, pois, do contrário, qual seria o significado do termo?
Deus, a quem não se vê, deve ser amado completamente, em todas as esferas da existência humana: racionalidade, sentimentos e espiritualidade. E nos dois textos paralelos é acrescido "com toda a sua força" (Mc 12.28-34 e Lc 10:25-28). A definição deste amor condiciona o mandamento similar.
O próximo, a quem se vê, com quem se interage deve ser amado de uma única maneira: como a si mesmo. Mas como é amar ao próximo como a si mesmo?
Amar a Deus implica no uso da razão, e não apenas da emoção. Não é um sentimento isolado, mas um fator que une as esferas possíveis da existência humana. E Jesus não anula, na conversa, os 613 mandamentos contabilizados pelos fariseus. Amar, portanto, implica em atitudes; para com Deus e para com o próximo.
O próximo como a mim mesmo implica que ele é meu espelho, meu reflexo. Que ele é eu! E eu sou ele!
Mas Jesus não parece estar ensinando que todos os seres humanos são, enquanto seres, um só. Talvez estivesse em Sua mente o desafio de que Seus discípulos tomassem a Trindade como exemplo: Três Pessoas, mas Uma só; Uma só, mas Três Pessoas.
As ideias de um filósofo do século XVIII, Immanuel Kant, dão uma perspectiva nova a este aspecto. Amar o próximo como a si mesmo equivale afirmar que o próximo é meu igual, em direitos e deveres. Não sou maior ou menor, enquanto pessoa, que ele, e o meu próximo não é maior ou menor, enquanto pessoa, que eu. Somos iguais. A minha dignidade é a sua; a dignidade dele é a minha. O que lhe faço, faço a mim mesmo, e o que ele me faz, faz a si mesmo. Usá-lo como objeto é reduzir a minha humanidade; ser por ele usado como objeto é reduzir-lhe a sua.
Neste ponto de Seu Evangelho, Jesus propõe as bases do que poderia ser um sistema ético universal. Como o filósofo tinha, no mínimo, fortes raízes cristãs de perspectiva luterana, talvez tenha se inspirado neste trecho para cunhar sua filosofia moral - sua ética:
1. aquilo que você deseja como correto deverá ser correto para todas as demais pessoas (para o seu próximo)
2. as ações humanas não podem tomar o ser humano como objeto, mas têm no homem o seu fim
3. aquilo que propomos como norma deve ser primeiro obedecido por nós.
A proposta kantiana parece estar de acordo com o primeiro mandamento da Lei, como definido por Jesus. E a este mandamento todos os que dizem ser Seus discípulos são obrigados a obedecer.
Mas é o amor a Deus que dá forma ao amor ao próximo como a nós mesmos. E é Ele que nos ensina como é amar. como bem lembra o apóstolo Joâo: "nós amamos porque Ele nos amou primeiro" (I Jo 4.19).
E a doutrina da graça comum é a que melhor ensina sobre a natureza do Seu amor: a criação não é jogada ao lixo com a queda de Adão, mas a ele são dadas condições para enfrentar agora um mundo hostil; o sol nasce sobre aqueles que recusam a crer, e a obedecer, ao Deus Criador assim como sobre aqueles que a Ele hipotecam obediência; ainda que o mundo todo esteja sob o poder do Diabo (I Jo 5.19) a bondade é encontrada em toda parte, assim como a busca pelo belo, bom e justo. O que a doutrina da graça comum ensina é que Deus não limita sua ação (seu amor, porque amor não é sentimento, é atitude) pela crença ou descrença da humanidade, mas permanece, em amor, dela cuidando.
Eduardo Ribeiro Mundim
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